sexta-feira, 18 de junho de 2010

Quatro e Cinco

São quatro horas e cinco minutos de um dia amargo quando olhou no relógio. Um dia que deixou o reflexo do espelho um pouco mais feio, mais gordo, apesar de seus setenta quilos distribuidos em um metro e setenta e sete de um corpo esguio e mal tratado pelo uso excessivo de álcool e pela má alimentação estimulada pela vida agitada dos dias atuais. Nada que se compare a uma aparência enferma, mas também não se via muito de vitalidade naquele sujeito. Ele olhou para o relógio e constatou que o ônibus já deveria ter passado. Não que ele fosse apanhá-lo, mas tornou-o referência para se lembrar de que já era em tempo de se mandar para casa. Constatando o atraso do coletivo resolveu iniciar a caminhada rumo ao aconchego e doçura de seu lar. Levantou-se do banco chumbado rente ao balcão do botequim onde estava calmamente saboreando seu coquetel predileto. Retirou do bolso do paletó uma velha carteira. Abriu-a para pegar o dinheiro que pagaria sua consumação e antes que o fizesse, se espantou. Algo parecia prender seu olhar à carteira aberta. Era um retrato. Um pequeno retrato, ainda em preto e branco, onde estava ele e sua esposa sentados num cais abandonado, que ele nem se lembrava onde ficava. Pareciam felizes numa intensidade impossível de crer para quem os conhecesse hoje em dia. A foto havia completado mais de vinte anos, assim como o seu casamento. Lacrimejando sorriu. Viu que, na foto, ele estava vestindo um chapéu, daqueles parecidos com os que os capos da máfia italiana usavam. Lembrou que ela adorava quando ele estava de chapéu. Dizia rindo: "Até parece um homem sério! Mas ainda bem que não é."

Após um par de minutos olhando pra foto sem desviar o foco, se deu conta que tinha que ir. Tirou o dinheiro rapidamente, pagou o balconista pela bebida e saiu a passos apressados pela calçada. Andando naquele ritmo quase-correndo e deixando escapar risos e breves gargalhadas foi virando esquinas, atravessando praças, cumprimentando desconhecidos e acariciando os cães que passavam pelo seu caminho. Acelerava os passos até perceber que já corria, feito um menino atrás de um pipa. Corria, corria. Até parar repentina e bruscamente em frente a uma loja. Uma loja de chapéus. Parou um instante admirando a vitrine, respirou fundo para retomar o fôlego, se ajeitou e entrou. "Boa tarde. Em que posso ajudá-lo?" "Boa tarde! Eu quero um chapéu. Um bem bonito, meio estilo anos trinta, Al Capone, sabe?" "Sim, senhor. Venha cá vou lhe mostrar alguns modelos." Se deliciou experimentando dezenas de modelos de chapéus. Se olhando no espelho já não sentia o excesso de feiura e gordura adquiridos naquele dia. Esbanjando sorrisos, finalmente escolheu seu preferido. "O senhor até parece um ator, daqueles de teatro." Elogiou a vendedora. E ele ainda se admirando no espelho respondeu: "O que parece, às vezes é. Vou levar este aqui!" Saiu da loja vibrante, parecia que tinha acertado os preciosos números da loteria federal. A loja já não era tão longe de sua casa como o boteco onde estava. Em dez minutos já estava em frente ao portão de casa. Inquieto, sentia que estava faltando alguma coisa. "Flores!", pensou. Num pequeno jardim entre o portão que dava para a rua e a porta da casa ele encontrou duas rosas, lindas e vermelhas. Arrancou apenas uma, pois ficou com dó de deixar o jardim solitário. Com o chapéu na cabeça e a rosa na mão esquerda, que posicionou às costas para que ninguém que o visse de frente conseguisse saber o que segurava, entrou em casa. Disse: "Querida, você está aí" Ela não estava na sala, o primeiro cômodo que se via ao entrar. Ele também não ouviu resposta. Se dirigiu até o quarto e quando abriu a porta viu na cama duas malas feitas e o guarda-roupa com as portas do lado dela abertas e completamente vazio. Mesmo não sabendo o que estava acontecendo, sentiu um aperto grande no coração. Ouviu a descarga ser acionada no banheiro, logo após do barulho do jorrar da torneira ouviu a porta se abrindo. Era ela. Estava toda bem vestida e ao vê-lo pareceu surpresa de encontrá-lo tão cedo em casa. "O que você está fazendo aqui a essa hora?" "Como assim meu amor? É o horário que costumo chegar." "Está maluco?! Ainda são quatro e cinco." "Quatro e cinco?? Mas quando...eu.." Sem completar a frase, olhou no relógio e realmente os ponteiros ainda marcavam quatro horas e cinco minutos. Estava quebrado. "O que são essas malas querida?" "São o fim do nós. Estou indo embora, já não temos nada há anos." Ele sem acreditar no que ouvira, soltou os braços e os dedos, deixando a rosa cair no chão. "Vai embora? Pensei que me amava" "E eu pensei que você fosse um homem sério." Sem dizer mais uma palavra sequer, ele sentou na cama, tirou o chapéu o segurando com as duas mãos ao colo e chorou silenciosamente com a cabeça baixa, enquanto ela passava feito um vulto por ele pra nunca mais voltar.
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