O barulho líquido que faz a cerveja ao cair no copo roubou a
atenção que ele prestava àqueles lábios lindos e rubros. Sem se dar conta de
que o que saia deles percorria um caminho tortuoso de um ouvido a outro, porém
sem a devida parada na consciência. Sabia que na verdade qualquer palavra proferida
por ela soaria bem. Como todas as outras vezes preferia ouvir a falar. Afinal
não encontrava motivos para interromper o deleite da observação. Novos
contornos se exibiam a cada novo encontro. Novas razões para continuar calado,
observando e criando na fertilidade da imaginação um cenário perfeito em tempo,
lugar e situação. A garganta permanecia seca, mas a cerveja veio salvá-lo.
Ela pensava em duas situações. Quem realmente ele era e o
que ele queria. Apesar de saber muito sobre o sujeito, tinha lá suas dúvidas
quanto aos desejos e intenções do rapaz. Alguma coisa naquelas sobrancelhas
dizia que valia a pena tentar descobrir, mas os olhos que não desgrudavam dos
lábios a incomodavam, mesmo que isso também causasse uma estranha sensação de
satisfação. Incrivelmente pensava em tudo isso sem deixar de falar um só
segundo.
Ele via a noite nascer por detrás dos cabelos dela.
Questionou-se se aquele tipo de encantamento poderia ser cessado quando quisesse.
Desesperado caiu em si que não. Iniciou uma sequência devastadora de piscadas
rápidas, a fim de umedecer as córneas. Ajeitou-se diversas vezes na cadeira.
Bebeu de uma só vez a cerveja espumada do copo americano. Ficou tão inquieto
que pediu licença interrompendo a oratória da garota dos lábios rubros e foi ao
banheiro. A essa altura crente de que água no rosto traria o efeito de um bom
tempo passado.
Ela assustou-se com o repentino sobressalto. Preocupada
abandonou a elaboração de teorias sobre o futuro e suas escolhas. Levantou e
foi à porta do banheiro saber se ele estava bem. Bateu delicadamente e
perguntou com as pontas dos dedos o que ele tinha. Ele respondeu que estava
bem, que só tinha levado um susto.
Ao ouvir a voz dos lábios rubros sem vê-los pela primeira
vez, percebeu que a voz era tão doce e aveludada quanto a imaginava por
inteiro. E o tom preocupado que ela tinha empregado na interrogativa fez sentir-se
melhor, mais sereno.
Ela respondeu que o esperava de volta, na mesa.
Ele disse que já estava indo.
Ela só queria vê-lo e ter a certeza de que estava bem.
Ele jogou mais água no rosto.
Ela já não pensou em mais nada.
Ele também não.
Eles conversaram o resto da noite e pela manhã os lábios já
não eram mais rubros.